terça-feira, 13 de agosto de 2013

Devaneios


Todos os dias ele entra pela porta do ônibus em um determinado ponto. Eu já decorei, são mais ou menos uns três ou quatro pontos de onde eu mesma pego esse mesmo ônibus. Sempre me sento na janela, nesses bancos solitários e isolados, logo depois da catraca. Me sinto bem assim, me isolo e detesto encontrar conhecidos quando estou perdida no meio próprio mundo, lendo um livro ou olhando pela janela. Mas parece automático, viro o rosto apenas para encontrar os olhos dele, embora eu sinta medo daquele olhar. É um olhar forte, ele não parece ser uma pessoa doce. Mas não o conheço, não sei seu nome ou idade, nem sei onde mora, apenas posso deduzir por onde pega o ônibus todos os dias, mas é o máximo que sei. Acho que ele sabe que eu o espero passar pela catraca todos os dias e espero o nosso contato visual discreto e cúmplice. Não gostaria de conhecê-lo, não faço questão nem de saber o seu nome. Sei que não iria gostar dele ou provavelmente poderia gostar e depois pararia de gostar. Os ciclos me impedem de sair da confortável zona de segurança. E o que temos ali é puro, uma troca de olhares, ele não sorri, eu também não sorrio. E logo eu volto a baixar os olhos e me concentrar em algum dos meus livros. É claro que penso o que se passa pela cabeça dele quando me vê ali sentada todos os dias. Acho que já faço parte da rotina dele, assim como ele também faz parte da minha. Não é nada diferente do café que eu compro quando chego ao terminal ou do “bom dia” que eu dou pro cobrador simpático do segundo ônibus que eu pego. Ele é só mais uma peça de uma rotina, é parte de um cenário alheio. Se eu fosse pintora, ele estaria nos detalhes de uma obra chamada “O Segundo Ônibus” e provavelmente ninguém lhe prestaria atenção e ele seria só mais um. Na verdade, é apenas isso que ele é, mais uma pessoa que acorda cedo todos os dias sem realmente querer isso, sai na rua, enfrenta os ônibus que andam por essas ruas esburacadas da cidade e ninguém o percebe, ninguém o nota, ninguém sabe quem ele é, para onde está indo e o que faz todos os dias. As mentes sãs podem vê-lo, podem sentar-se ao lado dele e ele continuará sendo um fantasma, assim como as outras pessoas devem ser aos seus olhos. Mas para alguém que possui olhos artísticos, qualquer pessoa que se pregue os olhos por mais de dois segundos pode se tornar uma importante obra. Ou um fragmento, nesse caso.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Azedume

Sempre o mundo e essa puta falta de interesse. Sempre essa compaixão barata, emprestada. Forçada. Sempre tudo aquilo que eu não preciso. Sempre as ordens insensatas, sempre os maiores esmagando aqueles que são bem pequenos. Sempre os maiores dobrando de tamanho. Os maiores sempre se tornando gigantes. Gigantes filhos de uma puta. Putas. Todas elas são putas. Submissas e pecadoras. Vadias nojentas colocando porcos em fila para o abate. Alguns sobem a ladeira da nobreza, mas outros escorregam aos tropeços pelos barrancos da falta de dignidade. São sujos e estúpidos. Roubam, matam, estupram. Fazem com as mulheres o que desejariam fazer com as putas das suas mães. E com os nobres filhos de uma puta. E sempre tem desculpas. As mais ridículas, as mais infames. E sempre tem o sorriso rasgando os lábios, mostrando os dentes, zombando da nossa cara. Sempre tem ironia e sempre tem ódio. E sempre tem essa compaixão forçada e nojenta. Sempre tem tudo aquilo que eu não preciso, tudo aquilo que me é inútil. E tem um tempo exagerado, quase desnecessário para se observar esse lugar podre. Tem cheiro de merda, mas disfarçam tudo com perfumes azedos e baratos. Esse mundo é um lixo, o nosso azar é nascer. E o castigo é não morrer.